Por Denis Bichuetti **
** Professor adjunto da Disciplina de Neurologia na Universidade Federal de São Paulo.
Passaram-se 100 anos desde a descrição original de Eugéne Devic e Fernand Gault à formulação do primeiro conjunto de critérios diagnósticos com uso de ferramentas modernas, baseado no avaliação conjunta do quadro clínico, imagem por ressonância magnética e liquor 1. Naquele momento a doença de Devic era considerada uma variante de esclerose múltipla, poderia ter um curso monofásico em 20% dos casos e seu tratamento era, de certa forma, não padronizado. Nos últimos 15 anos o conhecimento sobre a doença de Devic aumentou muito mais do que se conhece sobre a própria esclerose múltipla, identificando-se um anticorpo sanguíneo especifico2, hoje conhecido como anticorpo antiquaporina 4 ou NMO-IgG, alterações cerebrais específicas desta doença3-4, comorbidades com outras doenças autoimunes5-6 e, principalmente, o efeito de medicamentos imunossupressores específicos no seu tratamento preventivo7-9. Neste momento começamos a usar o termo neuromielite óptica (NMO) como sinônimo de doença de Devic.
Ainda sim muitos neurologistas tem dificuldades em identificar e acompanhar estes pacientes, pois o conhecimento acumulado ainda não havia sido incorporado de forma concisa, sendo que o conjunto de critérios diagnósticos de 2006 não permitia a inclusão de pacientes sem lesões em nervos ópticos ou medula espinal10, além de supervalorizar o NMO-IgG. O recém publicado conjunto de critérios diagnósticos, estabelecido por um consenso internacional11 vem para preencher as lacunas e dúvidas de muitos colegas (ver tabela).
O painel incluiu as síndromes hoje conhecidas como específicas para NMO: lesões de tronco cerebral, especialmente próximas a área postrema; manifestações encefálicas com lesões cerebrais específicas (área postrema, corpos mamilares, peri-hipotalamicas e periependimárias); e narcolepsia sintomática. Estes critérios permitem o diagnóstico de NMO mesmo na ausência concomitante de neurite óptica e mielite (mesmo na ausência ou sorologia negativa para NMO-IgG), além de permitir seu diagnóstico naqueles apenas com manifestações encefálicas, mas, nestes casos, com positividade para NMO-IgG.
Apesar de mais completo que os critérios anteriores e de trazer em um único artigo uma excelente revisão da clínica e imagem em NMO, os critérios atuais ainda deixam espaço para definir como devem ser chamados, ou categorizados, os pacientes com neurite óptica de repetição e mielite longitudinalmente de repetição, mas negativos para NMO-IgG. Ainda que a orientação de tratamento destes casos, pelo menos em nosso grupo, seja semelhante aos pacientes com NMO, i.e., imunossupressão, não podemos afirmar com exatidão se fazem parte de uma mesmo grupo ou se ainda há algo mais para se conhecer sobre a imunologia e fisiopatologia destas variantes.
Por fim, mas certamente ainda com muito a ser contado sobre a história desta doença, o painel internacional sugere o uso do termo Doenças do Espectro Neuromielite Óptica (NMOSD, do inglês, Neuromyelitis Optica Spectrum Disorders), facilitando a uniformização e denominação destes casos, hoje com manifestações muito além da neurite óptica e mielite longitudinalmente extensa. Não podemos esquecer da descrição original de Eugéne Devic, mas em seu respeito, a doença conhecida hoje como NMOSD é realmente muito diferente do que aquele que o homenageou, bom, como muitas vezes vemos no evoluir do conhecimento médico científico.
Referências